Daniel Sampaio: a história vitoriosa do duro combate contra a morte por COVID

Daniel Sampaio

Source: danielsampio.org

Confira na crônica do correspondente da SBS, em Lisboa, Francisco Sena Santos.


Hoje peço licença para dar voz a um sobrevivente à COVID-19. É um testemunho de alguém que passou pelos cuidados intensivos e que sentiu a morte à frente. Lutou e com o cuidado dos companheiros médicos e do dedicado pessoal de saúde, está recuperado, já voltou a casa.

Esta pessoa é um médico. Mais é professor catedrático na Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa. Tem dezenas de livros publicados. É um mestre respeitadíssimo, figura principal da psiquiatria no Portugal atual.

Chama-se Daniel Sampaio, é irmão de Jorge Sampaio, que foi presidente da República entre 1996 e 2006. Jorge Sampaio esteve aí nos estúdios da SBS quando, depois de estar em Timor, esteve na Austrália.

Nestes meses ele, também combalido, acompanhou com grande inquietação a luta do irmão pela vida.

O médico Daniel Sampaio ganhou o combate com a COVID e, esta semana, conta ao Expresso esta experiência que vale termos em conta.

É o testemunho, na primeira pessoa, de um combate – ganho! – contra a COVID.

Ponho na minha voz o testemunho de Daniel Sampaio. A história começa há dois meses e meio, começo de fevereiro. Conta o prof. Daniel Sampaio:

“A minha mulher foi a primeira a ser infetada. Inicialmente parecia que a doença dela seria benigna, foi ao hospital e mandaram-na embora, só com medicação, mas, dois dias depois, foi internada com falta de ar. Fiquei sozinho em casa durante cinco dias. Com o apoio dos filhos que traziam a comida. Fiquei a ler, mas já devia estar com o oxigénio muito baixo porque não me lembro de nada, apaguei essa fase da minha vida. Só me recordo de, a 5 de fevereiro, entrar no Hospital de Santa Maria de ambulância.

As pessoas com quem falei ao telefone enquanto estive sozinho em casa acharam o meu discurso estranho, contaram-me depois que eu dizia que a minha mulher estava doente e que íamos morrer os dois. Não me lembro, até que uma amiga mandou-me ver o oxímetro. Não fui prudente e naqueles dias em casa não olhei para o aparelho porque não sentia nada de especial.

Quando olhei, estava em 90 e à noite com 88 [é perigoso estar abaixo de 95]. Avisei os meus filhos, que chamaram o INEM. A 28 de janeiro fui para as urgências de Santa Maria e só fiquei um dia na enfermaria, onde já estava a minha mulher, embora não me recorde. Só me lembro de estar a contar uma história de infância a uma enfermeira, em que eu estava com um colega num carrinho de choque e que, num embate, as moedas dele voaram todas pelo ar. Não sei porque contei esta história, ria-me muito e ainda ouvi dizerem que tinha de ir para os cuidados intensivos, onde acabei por ficar 15 dias ventilado, em coma induzido.

Quando tiraram os tubos e comecei a respirar, não mexia nem braços nem pernas. Estava um corpo completamente inerte. Só mexia as mãos. Davam-me a comida na boca e faziam-me os tratamentos. Conseguia falar, mas entendiam-me mal. Aliás, a voz estava, e ainda está, diferente. Não tinha telefone porque nos cuidados intensivos ninguém tem; os médicos têm um walkie-talkie para comunicarem com os serviços, e mais nada. Estava no piso cinco, na antiga unidade de gastro, que foi convertida numa UCI para doentes COVID. A experiência foi muito dura.

Há mais duas histórias que quero contar. Convenci-me de que nos cuidados intensivos havia um médico que tinha quatro gatos. Eu gosto muito de gatos, mas esse médico nunca existiu, embora eu falasse com ele, chamava-se Hugo, e contava-me coisas dos gatos. Também me lembro de estar numa grande escuridão e de uma enfermeira se aproximar, chamar-me pelo nome e eu acordar e ver o teto todo cheio de estrelas. Deviam ser os períodos em que tentavam acordar-me do coma. Eu vi acontecer com os outros doentes: ‘Sr. António, está nos cuidados intensivos! Sr. Luís consegue ouvir-me?’ Pode ter acontecido realmente. Tudo isso foi na primeira semana na UCI, depois comecei a recuperar e a fazer uma crítica do que dizia. Foram experiências realmente muito intensas.

Na segunda semana, comecei a ficar muito lúcido, a ler, a fazer fisioterapia e a melhorar, e passei para a enfermaria. Negativei da COVID-19 ainda nos cuidados intensivos. Mas antes apanhei uma bactéria hospitalar. Foi grave porque comecei a ter febre alta, confusão mental e senti-me mesmo muito mal. Administraram-me antibióticos muito fortes, penso que os mais fortes que havia, e conseguiram controlar rápida e completamente a infeção. Para a COVID-19 só fiz corticoides. Não fiz nenhuma medicação experimental.

Estive na enfermaria de 26 de fevereiro a 19 de março. No total foram 50 dias de internamento, foi brutal.

foi muito difícil quando um de nós morreu. Todos percebemos a meio da noite que ele iria morrer. A morte está sempre presente na COVID grave. A doença é muito ameaçadora. Uma ameaça difusa. Eu não tinha dores nem me sentia mal, mas não podia largar o oxigénio. Tínhamos de lutar para que o pulmão funcionasse melhor e sabíamos que em muitos casos não se consegue.

Continua o testemunho de Daniel Sampaio:

Faço 75 anos em setembro. Na enfermaria, a experiência foi muito boa. Só tenho uma palavra para classificar o atendimento: excepcional. Ternura, cuidado, assistência operacional e humana insuperáveis. A equipa era de gente muito jovem. As auxiliares, que com certeza ganham muito pouco, tinham uma dedicação enorme e tratavam os doentes por ‘querido’ e por ‘amor’. Nunca ouvi um queixume ou protesto, mesmo perante doentes muito difíceis, muito exigentes. Durante a noite, estavam lá sempre que era necessário.~

Demorei cerca de três semanas até ter algum controlo sobre o meu corpo. Só comecei a andar uma semana antes de sair do hospital. Cheguei a temer nunca recuperar. O medo mais angustiante era o de perder a memória e a lucidez, duas características minhas. A certa altura telefonei a um neto e disse: ‘Já tenho a certeza de que não vou ficar estúpido!’ Ele ficou muito admirado, não percebeu, mas foi quando tive a segurança de que estava lúcido. Também foi importante sentir que a fisioterapia fazia efeito. Ainda nos cuidados intensivos, era horrível porque tinha de ficar um ou dois segundos em pé e imediatamente tinha de me deitar. Depois, o tempo em que ficava de pé foi aumentando. Os primeiros passos que dei foram apenas três, achei muito poucochinho, mas o fisioterapeuta achou ótimo. A pouco e pouco, com a ajuda dele, fui andando e nos últimos dias, andei sozinho.

 Durante todo o internamento, eu só contactei com a minha família por telemóvel. Falava duas vezes por dia com a minha mulher. Tínhamos comemorado 50 anos de casados em dezembro. Também foi extraordinária a certeza com que fiquei de que tenho muitos amigos. Não faz ideia da quantidade de pessoas que entrou em contacto comigo, pessoas absolutamente inesperadas, que eu não via há anos. Foram mensagens de encorajamento extremamente importantes.

Estive quase destruído. A infeção bacteriana quase me derrubou, pensei que ia morrer. Mas eu não queria morrer, pensava que ainda tinha alguns anos de vida, que queria fazer muita coisa e que tinha família e bons amigos. Sabia que se não fosse destruído, ia ficar uma pessoa melhor.

Esta é uma mensagem importante que quero transmitir. Porque o sofrimento é muito grande, as pessoas não têm a noção do que é esta doença. É uma doença em que é fundamental lutar porque a própria doença provoca um desamparo. Porque para uma infeção ou para um cancro já há medicamentos, cirurgias. Aqui não há tratamentos específicos. São remendos. E a sensação de que o ar não entra e o cansaço absolutamente terrível são esgotantes.

O Serviço Nacional de Saúde funciona muitíssimo bem. Foi o SNS que me salvou. Agora irrito-me muito quando dizem mal do SNS porque a coesão da equipa, o modo como funcionam, a capacidade profissional, senti tudo no dia a dia. Estou a ser acompanhado em cardiologia por uma ex-aluna. Foram muito delicados e tudo funciona.

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