O que foram as Guerras Australianas e por que a história delas não é reconhecida?

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Pôster do documentário "As Guerras Australianas". Credit: Blackfella Films

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Other ways to listen

Guerras de Fronteira é um termo frequentemente usado para descrever os mais de 100 anos de conflitos violentos entre os colonos brancos e os povos indígenas que ocorreram durante a colonização britânica da Austrália. Embora o país honre o seu envolvimento em guerras travadas no exterior, ainda não reconheceu as lutas que o tornaram o que é hoje.


Pontos principais
  • As Guerras Australianas só puderam ser reconhecidas depois que a proclamação da “Terra Nullius” foi legalmente contestada e anulada.
  • As Guerras Australianas foram travadas em todo o continente, desde a chegada da primeira frota em 1788, e até meados da década de 1930.
  • Registros coloniais e provas arqueológicas descobertas por especialistas demonstram a escala horrível do conflito.
ALERTA: Este conteúdo contêm referências à violência que pode angustiar algumas pessoas.

Quando o capitão às costas do que hoje é conhecido como Austrália, ele declarou esta vasta terra como “Terra Nullius” - terra de ninguém, em latim. No entanto, o continente insular era o lar de centenas de diferentes nações e clãs aborígenes e das ilhas do Estreito de Torres – centenas de milhares de povos indígenas que foram instantaneamente considerados “súditos” da Coroa Britânica.

Isto tornou-se o gatilho para as , os conflitos brutais entre os povos indígenas e os colonos que marcaram a fundação da Austrália. Uma história que só recentemente começou a ser reconhecida.

A é uma mulher Arrernte e Kalkadoon com herança europeia. Ela produziu “The Australian Wars”, uma série de documentários que detalha a natureza da luta dos povos indígenas na defesa de suas terras dos colonos britânicos.
Estas foram as guerras travadas na Austrália e que realmente criaram o estado australiano moderno.
Rachel Perkins, cineasta.
As foram travadas em todo o continente, desde a chegada da primeira frota em 1788, e até meados da década de 1930, mas estes conflitos não foram ensinados nas escolas ou mesmo reconhecidos como guerra até ao final do século XX.

O é um dos historiadores mais respeitados da Austrália e especialista em guerras. Quando ele começou a ensinar história em 1966, quase não havia referências ao povo aborígine nos livros de história.

“Só mencionavam os aborígenes duas vezes, apenas de passagem, e não havia sequer entrada no índice”, diz.

Assista ao trailer de As Guerras Australianas:
O professor Reynolds diz que isto se deveu em parte ao fato de as Guerras de Fronteira não terem sido percebidas em meados do século XX como uma guerra em grande escala, uma vez que o conflito era semelhante a uma guerra de guerrilha.

“A opinião era que era demasiado pequeno e disperso para ser considerado ter a gravidade de uma guerra. Não havia uniformes, nem soldados marchando… Nunca houve realmente um caso de grandes formações e batalhas no sentido clássico, mas mesmo assim, era claramente uma forma de guerra.”

O , outro especialista nas Guerras da Fronteira Australiana, concorda. Ele diz que este equívoco é resultado da Primeira e da Segunda Guerras Mundiais, que mudaram a forma como a guerra era vista.

No entanto, estes tipos de guerras em grande escala são incomuns na história da humanidade.

“Eles sabiam que era uma guerra naquela época. Todos os documentos coloniais referiam-se a guerra, mas nos séculos XX e XXI perdemos isso de vista. E penso que existem também algumas razões políticas subjacentes pelas quais muitas pessoas não conseguem identificá-la como uma guerra”, explica Clements.

Estas razões políticas resultam de uma contradição jurídica entre a proclamação da “Terra Nullius” e a lei britânica. Os aborígenes foram declarados súditos da Coroa, portanto, o Império não poderia “declarar guerra oficialmente... fazê-lo significaria que eles estariam declarando guerra aos seus próprios cidadãos”, diz Rachel Perkins.

“No entanto, os britânicos usaram a força militar para garantir que a ocupação do continente fosse bem-sucedida”, acrescenta.
Frontier War
Conflitos por terras aconteceram em todo o território australiano. Fonte - Australian War Memorial. Source: Supplied

Mabo e a derrubada de 'Terra Nullius'

As guerras australianas só puderam ser reconhecidas depois de a proclamação da “Terra Nullius” ter sido legalmente contestada e anulada, no início da década de 1990, naquela que é conhecida como a decisão histórica de Mabo.

“Até então, a opinião era que os aborígines não eram donos da terra, portanto, a luta não podia ser sobre o controlo da terra porque eles não tinham qualquer título legal sobre ela. Depois de 1992 e desse julgamento, a natureza da guerra teve de mudar porque claramente se tratava do tipo de questões que a guerra sempre tratou: o controle do território”, diz o professor Reynolds.

Clements diz que o fracasso do Império Britânico em reconhecer a propriedade indígena de terras na Austrália é uma anomalia histórica.

“No coração da colonização britânica da Austrália havia uma premissa falha. Ao contrário de todos os outros países colonizados pelos britânicos, eles não reconheceram a soberania dos proprietários indígenas aqui na Austrália. Por causa disso, não houve tratados, não houve tentativa de negociação com os povos locais e até hoje lutamos do ponto de vista jurídico para entender quais são os seus direitos à terra”.

E esse fracasso na negociação levou a um brutal derramamento de sangue.

Registos coloniais e provas arqueológicas descobertas por equipes de especialistas demonstram a escala horrível do conflito.

Só o guarda mais de 400 restos mortais de antepassados aborígines no seu repositório, muitos mostrando evidências de morte por execuções, decapitações e massacres.

Rachel Perkins diz que os descendentes daqueles que sobreviveram sempre se lembrarão.
Muitos aborígenes carregam a história. Transmitiram histórias sobre o que aconteceu com eles, conosco, em nossas famílias. Então, cresci sabendo do massacre do meu povo em Queensland e do estupro violento da minha bisavó.
Rachel Perkins, cineasta.
Rachel Perkins - The Australian Wars
Rachel Perkins, diretora do documentário 'The Australian Wars'. Credit: Dylan River/Blackfella Films

A Guerra Negra

A foi o conflito fronteiriço mais intenso da história da Austrália.

“Durante as Guerras Negras, mais tasmanianos foram mortos do que o número de tasmanianos que morreram na Coréia, Malásia, Indonésia, Vietnã e em missões de manutenção da paz combinadas”, diz Rachel Perkins na série Australian Wars.

Nicholas Clements diz que o nível de violência de ambos os lados foi tão intenso que as autoridades coloniais e os colonos ficaram “petrificados”.

“A resistência aborígine foi impressionante. Todo mundo conhecia alguém no mundo colonial que havia sido morto ou ferido por povos aborígenes, que tiveram suas fazendas incendiadas. Foi absolutamente aterrorizante”.
Muita gente pensava em abandonar a colônia.
Nicholas Clements, historiador australiano.
Mas os europeus prevaleceram e quase aniquilaram os indígenas da Tasmânia.

O conflito intensificou-se por conta da violência sexual.

“O gatilho da violência, o fósforo que acendeu a faísca, foi a violência sexual”, acrescenta Clements.

O estupro e sequestro sistêmico de mulheres aborígenes era tão comum que ele atribui a sobrevivência de alguns clãs aborígenes à agressão sexual.

“É apenas por um fio de cabelo que hoje temos descendentes aborígenes na Tasmânia, porque foram quase completamente exterminados, em grande parte pela violência”, diz.
What is Native Title explainer NITV Eddie Koiki Mabo
Eddie Mabo com o seu time de advogados. Source: SBS Credit: National Museum of Australia

Jogando gasolina no fogo

Para esmagar a resistência aborígine em muitas partes da Austrália, os colonialistas criaram a Polícia Nativa, uma força paramilitar treinada usada para disseminar o terror.

“Soldados nativos foram recrutados e usados como força militar. Esta foi sem dúvida a principal força para quebrar a resistência aborígine”, diz o professor Reynolds.

Os homens receberam uniformes, armas e cavalos. O historiador Clements acredita que eles foram manipulados por oficiais brancos, que os usaram pelo seu conhecimento tradicional aborígine e habilidades na mata.

“O número de vítimas cobrado pela polícia nativa só em Queensland foi de dezenas de milhares. As estimativas vão até 60 a 80.000, creio eu, o que é absolutamente surpreendente, e lança uma nuvem moral sobre todo este negócio desagradável”, diz.
Australian Aboriginal camp in the nineteenth century
Um acampamento aborígena em ilustração do século XIX. Source: Getty
Rachel Perkins teve que enfrentar toda essa história durante a produção da série de documentários sobre as Guerras Australianas.

“Encontrei uma gravação que foi feita pela minha avó falando sobre o massacre da família da mãe dela, que eu nunca tinha ouvido antes, e nunca tinha estado no local onde aconteceu, e nunca tinha descoberto realmente onde aconteceu, até fazer a série documental”, diz ela.

Clements, cujos antepassados foram colonos, acredita que todos os australianos precisam superar a vergonha e lançar luz sobre as injustiças do passado.

“Quer os antepassados de alguém estivessem envolvidos ou não, somos todos herdeiros de terras aborígines, que foram terras roubadas. No mínimo, todos temos um papel a desempenhar na revelação desta história, na aceitação desta história e no desempenho de um papel num futuro positivo.”
Nowhere was resistance to white colonisers greater than from Tasmanian Aboriginal people, but within a generation only a few had survived the Black War.
Em nenhum lugar a resistência aos colonizadores brancos foi maior do que a dos aborígenes da Tasmânia, mas, no espaço de uma geração, apenas alguns sobreviveram à Guerra Negra. Source: The Conversation / Robert Dowling/National Gallery of Victoria via The Conversation Source: The Conversation / Robert Dowling/National Gallery of Victoria via The Conversation

Por que esta história não é lembrada?

O professor Reynolds acredita que a Austrália, uma nação que homenageia os seus soldados mortos nos seus muitos memoriais de guerra, precisa de reconhecer abertamente o fa]to de que as Guerras de Fronteira aconteceram e foram repletas de atos criminosos contra a humanidade.

“Como é que não conseguimos aceitar as guerras australianas?” ele questiona.

“Este não é o caso nos Estados Unidos. Eles reconhecem oficialmente todos os conflitos com [os nativos americanos] como guerras. Também não é o caso da Nova Zelândia, onde as guerras Maori sempre foram uma parte muito importante da história.”

Rachel Perkins diz que a razão desta anomalia é simples.

“A Austrália é um dos lugares únicos no mundo de onde os colonos não partiram”, diz ela.
Os colonos permaneceram no poder, por isso penso que isso torna um pouco mais difícil para a nação reconhecer ou relembrar aqueles que defenderam o país porque a força de ocupação colonial não deixou de existir.
Rachel Perkins, cineasta.
Nicholas Clements acredita que “para que não esqueçamos”, a frase comumente usada para homenagear os soldados australianos caídos, deveria ser estendida aos guerreiros que lutaram contra a ocupação britânica das suas terras.

“Eu me sentiria muito mais orgulhoso se o meu país reconhecesse com coragem o seu próprio passado, os erros dos seus antecessores, e se comprometesse totalmente a corrigir esses erros da melhor maneira possível no futuro... Quero que os meus filhos vejam que, na paisagem, seja com memoriais ou com nomemclatura em línguas indígenas, a aboriginalidade está aí, está presente, reconhecida.”

Theestá disponível para transmissão no SBS On Demand. A série também está disponível com audiodescrições/legendas para públicos cegos ou com deficiência visual.
This content was first published in September 2022.

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