Regina Casé fala da estreia na Austrália, de Três Verões, filme sobre a Lava Jato e luta de classes

Regina Case em Três Verões

Regina Casé é a governanta Madá, protagonista do premiado filme ‘Três Verões’, de Sandra Kogut, que estreia nas principais capitais da Austrália Source: Potential Films

“Para os brasileiros que vão assitir esse filme na Austrália eles vão achar que estão vendo uma espécie de documentário, assistindo ao noticiário daquela época da Lava Jato,“ disse Regina Casé à SBS em Português. Nessa entrevista, a atriz fala sobre o premiado Três Verões, as nuances da personagem que lhe rendeu prêmios na Espanha e Turquia, do papel de Lurdes na novela Amor de Mãe, e do papel da arte na recuperação de um Brasil pós-pandemia. “A arte é fundamental, central, estutural na vida de todo mundo. Como a gente ia sobreviver a pandemia sem música, sem ver filme o tempo todo?” disse a atriz que confessou ‘eu e meus filhos, queremos muito conhecer a Austrália’.


"O que acontece com as pessoas que trabalham para os ricos e poderosos quando a vida deles desmorona?"

A resposta pode ser encontrada no novo filme da cineasta Sandra Kogut, Três Verões, que mostra o impacto da Lava Jato na vida de um grupo de funcionários de uma mansão no Rio de Janeiro.

No filme que estreia nos cinemas australianos, a Lava Jato, operação que revelou o escândalo da lavagem de dinheiro e propina de empresários, políticos e juízes no Brasil é analisada através do olhar da empregada doméstica Madá, interpretada por Regina Casé.
Regina Casé em Três Verões
Regina Casé recebeu o prêmio de Melhor Atriz pelo filme Três Verões, nos Festivais de Cinema da Espanha e Turquia Source: Potential Films
Edgar (Otávio Muller) e Marta (Gisele Fróes) formam um rico casal que todo verão, entre o Natal e o Ano Novo, realizam festas em sua belíssima mansão à beira-mar. Madalena, a Madá (Regina Casé), é a caseira, a empregada doméstica, a governanta que coloca tudo em ordem, inclusive as fraturadas relações familiares. 

Três Verões se passa durante três anos: 2015, 2016 e 2017.

As festas e opulência da familia do casal saem de cena após a prisão do patrão Edgar envolvido na Operação Lava Jato. O filme então se volta para o impacto do ‘desmoronamento’ moral da mansão e dos patrões aos olhos dos funcionários e de Madá.  

Madá mostra o lado dos milhões de brasileiros de baixa renda que labutam para conseguir um salário mínimo enquanto os ricos burlam a lei para ficarem ainda mais ricos.

Obstinada Madá insiste em encarar tudo de maneira resiliente, alegre, usando o riso como arma de resistência

“Sua felicidade me irrita,” diz ‘seu’ Lira (Rogério Fróes), pai de Edgar, que oferece algumas das melhores cenas do filme. 

O roteiro é ágil, engraçado, mas aos poucos se revela mais dramático, e quando menos se espera, o drama de toda a situação que estava ali desde o início, é revelado.

Veja aqui os principais trechos da entrevista [sem spoilers].
Regina Casé em Três Verões
O impacto do escândalo da lavagem de dinheiro e suborno na vida da classe trabalhadora no Brasil, revelado pela Operação Lava Jato, é contado de maneira inusitada no filme Três Verões, de Sandra Kogut Source: Potential Films


SBS Portuguese - Três Verões chega a Austrália no próximo dia 24 de junho, em cinemas selecionados em todas as capitais do país. A que você acha que se deve o sucesso no exterior desse filme?  

Regina Casé – Foi uma supresa maravilhosa, na Austrália?! Na Turquia, tive a felicidade de ser premiada como melhor atriz, e daí fomos para diversos países e o filme continuou recebendo prêmios, isso tudo me dá uma felicidade muito grande. Mostra que as emoções, mostradas no filme, são universais.

SBS Portuguese - O que as audiências na Austrália podem esperar de Três Verões 

Regina Casé – Acho que em Três Verões, eles vão ver uma coisa que muitos brasileiros conhecem no Brasil que é uma relação interclasse absurda, que não é só uma relação de opressão é algo muito mais complexo.

O filme gira em torno de Madá, a caseira de uma mansão, mas – sem dar muito spoiler – a casa que ela cuida vai parar na mão dela.

Para os brasileiros que vão assitir esse filme eles vão achar que estão vendo uma espécie de documentário, assistindo ao noticiário daquela época quando começou a Lava Jato, e o que a gente via no jornal todo dia, tantos escândalos, tanta corrupção. Parece que você está vendo um documentário mas é uma obra de ficção.

SBS Portuguese - Eu assisti o filme e realmente fala muito do impacto da operação Lava Jato na vida dos empregados das famílias ricas. Mas o que me surpreendeu foi que você jamais veria o escândalo da corrupção e tanta desonestidade pelo ponto de vista, às vezes ingênuo, da caseira. Você não fazia cinema desde 2015, o que te levou aceitar o papel da Madá?

Regina Casé - Eu já tinha feito outro trabalho com a Sandra, fizemos o curta-metragem ‘Lá e Cá’ e somos muito amigas. Eu acho que a gente estava se devendo. Eu tenho um trabalho muito constante e muito intenso na TV e isso foi atrapalhando as nossas datas para fazer o filme.

Quando ela me propôs eu não pensei nem um segundo. Principalmente por que o personagem da Madá é adorável, ela é uma mulher incrível, como eu conheço muitas no Brasil que não são só empreendedoras, mas inteligentes, criativas. Madá é inteligente e fiz ela com pouquíssimas ferramentas, que me foram dadas, e ela consegue fazer milagres.
Regina Casé em Três Verões
"Você vê o filme como uma comédia e de repente ele dá uma virada e te leva para outro lugar," diz Regina Source: Potential Films
SBS Portuguese – Assim como no premiado Parasita (Coreia do Sul, 2020), vemos a luta de classes em Três Verões. A situação em que os empregados tomam conta da casa.  A Madá é empregada, mas depois vira patroa. Como você vê essa inversão de papéis?

Regina Casé – Acho que é bacana as pessoas verem isso porque às vezes as pessoas pensam nessa relação entre patrão e empregado, na luta de classe de uma maneira muito simplista e contrastada. 

Aqui no Brasil isso acontece de um jeito super perverso, mas muito interessante, com muitos outros fatores. Eu tenho me especializado em papéis de mulheres que atuam no trabalho doméstico. Fiz Que horas ela volta, fiz a Lurdes, na novela Amor de Mãe.

Porque o assunto toca muitos países. Acho que as pessoas ao redor do mundo que assistem vão dizer “olha como eles lá no Brasil vivem isso que a gente também tem aqui, mas que a gente vive de maneira completamente diferente”.

Mas no Brasil a gente vive de uma maneira completamente diferente com mulheres surpreendentes. A Madá podia ser apenas uma mulher oprimida, sofrida, mas não, ela tem um compromisso com a felicidade, com a prosperidade dela. Tem um compromisso de mudar aquela situação que é terrível, e vai à luta e cai pra dentro!
Regina Casé em Três Verões
"As pessoas têm uma tendência a ter uma visão preconceituosa de achar que todas as empregadas são iguais em que todas as patroas são indivíduos diferentes" Source: Potential Films
SBS Portuguese – Uma das cenas de maior dramaticidade ocorre durante a gravação do comercial de batedeira, só você e a câmera, uma cena leve engraçadissima de repente vira para um momento muito mais dramático. Incrível como um filme que estava tendo um ritmo muito mais cômico se transforma com a sua interpretação. Como você se sentiu ao fazer aquela cena?

Regina Casé – Foi uma cena de muito impacto para o elenco. A filha da Sandra [Kogut, diretora do filme] tinha uns 10 anos, e quando acabou a cena ela veio correndo para mim e perguntou se tudo aquilo tinha mesmo acontecido comigo e chorou.

Eu acho que é isso, o filme provoca isso no espectador, voc­ê v­ê o filme como uma comédia e de repente ele dá uma virada e te leva para outro lugar, e esse lugar estava todo o tempo ali embaixo, subliminarmente.

Vem a tona, no susto.

SBS Portuguese - A figura da empregada doméstica ‘como no Brasil’ não existe aqui na Austrália, faxineiros trabalham por hora, como diaristas, temos muitos imigrantes, estudantes internacionais fazendo esse serviço que paga relativamente bem. Você acha que as audiências estrangeiras vão entender essa dinâmica patroa-empregada que é tão única no Brasil?

Regina Casé – As pessoas têm uma tendência a ter uma visão preconceituosa de achar que todas as empregadas são iguais em que todas as patroas são indivíduos diferentes.

Isso daí é uma coisa que me incomodava muito então eu procurei fazer a Madá de maneira completamente diferente das outras que fiz.

Eu acho que quando você tem uma pessoa [diarista] que arruma sua casa e vai embora, a sua relação é mínima. 

No Brasil tem essa loucura onde os funcionários dormem em casa, participam da vida da família. O que não existe, a empregada não tem os benefícios de estar na família e tem todos os ônus de estar na família. Acho que isso pra quem está de fora é impressionante.

Mas a Madá consegue quebrar isso.
Regina Casé em Três Verões
"A Madá podia ser apenas uma mulher oprimida, sofrida, mas não, ela tem um compromisso com a felicidade, com a prosperidade dela," conta Regina. Source: Potential Films
SBS Portuguese - Não posso deixar de falar da novela ‘Amor de Mãe’, muito forte na sua carreira, exibida no ápice da pandemia da Covid no mundo. Como você se sentiu durante as gravações, fazendo parte de um momento histórico do Brasil. Qual o papel da arte em momentos tão críticos como a pandemia da Covid?

Regina Casé – Para mim foi muito duro ter feito um filme lindo como esse, estreando pelo mundo, ganhando prêmio, também teatro, tinha fechado uma temporada no teatro em São Paulo, e a novela que, eu não fazia novela há 20 anos, foi a primeira novela da história da Globo a ser interrompida pela pandemia. Foi tudo muito frustrante. Fazer cinema, mesmo antes da pandemia, já é uma guerra.
Regina Casé em Três Verões
"No Brasil tem essa loucura onde os funcionários dormem em casa, participam da vida da família. O que não existe, a empregada não tem os benefícios de estar na família e tem todos os ônus de estar na família": Regina Casé Source: Potential Films
A  arte não só cumpre um papel mas acha caminhos inacreditáveis. A novela depois que voltou, ficou mais humana, nós atores começamos a descobrir outras emoções, inseguraças, medos, foi algo documental estávamos vivendo aquilo pela primeira vez na vida. Isso tudo a gente foi descobrindo e passando para a novela.

Nós atores e espectadores desobrimos todas aquelas emoções juntos. A arte é fundamental, imagine como a gente ia atravesar a pandemia sem música?  Sem ver filmes o tempo todo?

Regina Casé recebeu o prêmio de Melhor Atriz pelo filme Três Verões, no Festival de Málaga, na Espanha, e no 56º Antalya Golden Orange Film Festival, da Turquia. O filme venceu a categoria de melhor edição do Havana Film Festival e fez parte do programa do Festival Internacional de Cinema de Toronto de 2019.

Para ouvir a entrevista por completo clique no botão play da foto que abre essa reportagem. Três Verões estreia nas capitais australianas no dia 24 de junho.
Three Summers
Source: Potential Films
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